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E se a Fera fosse Ela?

Helena Klein

Uma reflexão sobre narrativas, gênero e redenção


Há contos que sobrevivem ao tempo porque sabem mudar de pele. A Bela e a Fera é um desses. A cada geração, ela se reinventa — mas quase sempre com o mesmo cerne: a mulher doce, paciente, capaz de amar o monstro até que ele se torne homem.


A primeira camada parece simples: uma história de amor, aceitação e transformação. Mas ao puxarmos o fio, talvez encontremos uma inquietação mais profunda: por que a Fera é sempre ele? E por que a salvação, o gesto que cura e humaniza, recai quase sempre sobre ela?


O roteiro da redenção

O trope da mulher-redentora e do homem-ferido é um dos pilares mais duradouros da cultura ocidental. Está no conto original de A Bela e a Fera, de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont (1756), e percorre séculos em novas roupagens:


  • O Fantasma da Ópera (Gaston Leroux, 1910)

  • Crepúsculo (Stephenie Meyer, 2005)

  • A Forma da Água (Guillermo del Toro, 2017)


Em todos eles, o enredo se repete: ele é brutalizado — pela vida, pela sociedade, por sua própria natureza. Ela, com sua ternura obstinada, vê o que ninguém mais vê. E por amor, ele muda.

Heathcliff, em O Morro dos Ventos Uivantes (Emily Brontë, 1847), é outro avatar dessa masculinidade ferida: amargurado, vingativo, quase inumano. Mas Catherine, mesmo dividida, é quem o vê por inteiro.


Na versão Disney de A Bela e a Fera (1991), esse modelo é literalmente animado: um monstro maldito, uma garota leitora, e um amor que o devolve à humanidade — entre candelabros falantes e vassouras dançantes.


E se fosse o contrário?


O que acontece quando a mulher ocupa o lugar da Fera? Quando é ela quem carrega a raiva, o desencaixe, a monstruosidade? Quando é ela que precisa ser amada apesar de?


É raro. Raríssimo. A mulher feroz, na ficção, é muitas vezes punida — nunca redimida. Quando muito, aprende a se aceitar sozinha, em um arco de autossuperação. Porque o imaginário ainda resiste à ideia de que uma mulher brava, intensa ou monstruosa… possa ser digna de amor.


Mas há rachaduras nesse espelho.


Inversões e fendas narrativas


Algumas obras ensaiam inverter a equação:

  • Encantada (Kevin Lima, 2007) brinca com os clichês e empodera a donzela.

  • Shrek (Andrew Adamson, 2001) nos dá Fiona: ogra por fora e guerreira por dentro — ela salva, luta, escolhe.

  • Em A Forma da Água, Elisa, mulher muda e à margem, se apaixona pela criatura aquática. E ali, o amor é mais mútuo, menos messiânico.


A escritora Angela Carter, em The Bloody Chamber (1979), reconta contos de fadas com fúria e desejo: suas protagonistas não só amam — elas devoram, gozam, transgridem. Já Clarissa Pinkola Estés, em Mulheres que Correm com os Lobos (1992), denuncia a domesticação da mulher selvagem pelas narrativas patriarcais e propõe um retorno ao instinto, à fúria sagrada, à loba interior.

Essas obras não apenas trocam o gênero dos arquétipos — elas desprogramam o enredo.


E se…?


Talvez esteja na hora de recontarmos esse mito de trás pra frente. De deixarmos que a Fera seja Ela. E que mesmo amada, ela não precise se tornar menos feroz para ser aceita.

Porque às vezes, a força que mais assusta…


 é aquela que ousamos desejar.


Referências literárias e culturais mencionadas:

  • Jeanne-Marie Leprince de Beaumont – La Belle et la Bête (1756)

  • Gaston Leroux – Le Fantôme de l’Opéra (1910)

  • Stephenie Meyer – Twilight (2005)

  • Guillermo del Toro – The Shape of Water (2017)

  • Emily Brontë – Wuthering Heights (1847)

  • Disney – Beauty and the Beast (1991)

  • Kevin Lima – Enchanted (2007)

  • Andrew Adamson & Vicky Jenson – Shrek (2001)

  • Angela Carter – The Bloody Chamber (1979)

  • Clarissa Pinkola Estés – Mulheres que Correm com os Lobos (1992)


Enquanto isso, seguimos encenando a mesma fábula: ela ama, ele muda. Ela salva. Ele agradece. Mas e se ela não quiser ser salva? E se ela gostar das garras, do grito, do excesso?

Talvez estejamos prontos — ou quase — para contar novas histórias. Histórias em que a mulher não precise ser sempre bela. Nem sempre dócil. Nem sempre redentora.


Histórias em que ela possa ser a fera — e ainda assim, ser amada.




Helena Klein é hoteleira, psicanalista clínica, professora de inglês e agente cultural. Foi Diretora do Núcleo de Arquivo Histórico e Biblioteca de Nova Petrópolis/RS. É membro do Coletivo de Escritores de Nova Petrópolis e conselheira no Conselho Municipal de Políticas Públicas Culturais, no eixo Livro, Literatura e Biblioteca. Atualmente, é Secretária do Colegiado do Estado Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca. Acadêmica do 8º semestre de Licenciatura em Letras – Português, é integrante do diretório acadêmico de Letras Mario Quintana da UCS como Diretora de Cultura EAD e é caloura na graduação de Escrita Criativa/UNIASSELVI.

É autora de romances, contos e crônicas, participou de oficinas literárias e publicou obras coletivas como Contos Contemporâneos. Incentivada por Alcy Cheuiche, publicou A Caixa de Brinquedos - Die Spielzeugekiste, A Caixa de Brinquedos – o ano da pandemia e Efeitos do Amor. Lançou na Bienal Internacional do Livro de SP/2024 o livro Short Stories for Fearless Kids. Além disso, tem várias crônicas e contos em diversas antologias nacionais e internacionais; e e-books como Insanis, Hver Torsdag er Magi e A Casa. Desde 2024, ministra a oficina La Petite Fabrique de Littérature. Faz parte da startup Sinapse Cultural, que tem como premissa a economia criativa e o incentivo e apoio aos produtores culturais: www.sinapsecultural.com.br.


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