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o cristianismo além da fé

Foto do escritor: Jussara PratesJussara Prates

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O blog SINAPSE CULTURAL é um canal de compartilhamento de ideias, opiniões e conhecimentos sobre Educação, Arte, Cultura, Informação, Política e Saúde, nas suas complexas formas de manifestações.


Por:

*Jussara Prates


De forma simplificada costumamos entender a Semana Santa como uma tradição religiosa Cristã que celebra a paixão, a morte e a ressureição de Jesus Cristo. Ela se inicia no domingo de Ramos, que relembra a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém e termina com a ressurreição de Jesus, que ocorre no domingo de Páscoa .


Historicamente, o cristianismo se levanta em meio permeado pelo paganismo e cresce debaixo da espada da perseguição. Em lugar de se extinguir, alcançou boa parte da população até chegar ao imperador que dividiria as águas da história: Constantino.


É preciso compreender o cristianismo além da fé, pois seu processo histórico permeia a vida de grande parte do mundo e sabemos pouco porque a presença e pregação de Cristo incomodavam tanto? Porque a necessidade de sumária e exemplar execução? Essas e outras perguntas veem sendo feitas ao longo da história. Embora inúmeros estudiosos se debrucem sobre essa temática, perdura o ar de mistério e incompreensão, embora seja consenso que muito da formação moral do ocidente advém de seus ensinamentos.


    Partindo desses questionamentos revisito a obra “A Cidade Antiga”, do autor francês Fustel de Coulanges, onde explica o surgimento dos conceitos de Direito, Família e Propriedade nas antigas cidades da Grécia e Roma primitivas. Constituídas anteriores ao nascimento de Cristo, nelas imperava a religião doméstica, em que idolatravam o fogo sagrado, e através da manutenção de ritos aos antepassados de linhagem masculina de uma mesma família, mantinham o poder sobre a propriedade, a moral e sobre a política.


O direito a propriedade era totalmente privado e fundido à religião doméstica e familiar. Não foram as leis, mas a religião, que primeiro garantiu o direito de propriedade. A família era um estado organizado, com chefe hereditário, bastando para si própria, explorando a clientela e os escravos, podendo constituir-se de numeroso grupo, com uma religião que lhe mantinha a unidade, por meio do direito privado, leis próprias e formando extensa sociedade. Com o tempo, as famílias se juntavam em genos, que formavam grupo com descendência comum e origem “pura”.


A cidade antiga reuniu uma sociedade complexa que se diferenciava entre cidadãos e estrangeiros, livres e escravos, membros das famílias (patrícios) e plebeus, vinculando os poderosos com os marginalizados pelas relações de patrão-cliente. Várias cerimônias públicas regulavam a vida da cidade. O indivíduo não gozava de liberdade, antes vivia em função dos interesses de quem controlava a cidade.


De forma contínua a história se processa e mudanças impactam essa antiga organização social e aos poucos foram transformando o modo de ver e compreender o mundo. Uma das mudanças foram as conquistas do império romano, que enfraqueceu os deuses locais, outra foi a própria evolução humana que, através do conhecimento, questionamentos acerca da vida e do mundo, criaram concepções mais abstratas sobre a religião, dando origem a filosofia que, de certa forma, passa a entrar em choque com as antigas estruturas e conceitos.


Os filósofos tiraram a religião e a política do campo do intocável, do divino e do inquestionável. Tiraram a moral, a verdade e a justiça do campo da religião. Como sabemos, muitos desses precursores foram exilados ou condenados a morte. O fato é que, mesmo quando os manuscritos eram queimados, ficavam soltas as ideias, e isso vai repercutir através do tempo.


No rastro de poeira das antigas crenças é que o cristianismo se consolida inspirado na evolução humana, no conhecimento, e trazendo à luz novos conceitos sobre a vida, questionamentos e abstrações sobre a própria religião com nuances filosóficas. Não se trata aqui da defesa, discussão ou afirmação se Cristo existiu, se não existiu, se era deus ou personagem histórico. Trata-se da concordância com a obra de Fustel, que considera que o cristianismo foi uma evolução na história do pensamento. Afinal, quando as ideias proferidas por Jesus Cristo se espalharam, elas obrigaram o poder e as estruturas das sociedades a mudar. Foi um avanço porque a partir dele o “deus” passou a ser onipresente, cosmopolita e universal, cuja presença de todos era importante independente da classe social e origem. É claro que esses novos conceitos incomodaram!


Nesse novo modelo devia-se “amar seus inimigos”, “acolher os estrangeiros” e pela primeira vez passou a vigorar a ideia de igualdade entre os homens porque “todos somos filhos de um mesmo deus”. Surgem aí os princípios do Humanismo onde a fé se baseava numa relação de confiança. Já não precisavam sacrifícios para agradar aos deuses, pois “o homem com a sua consciência tem livre arbítrio”, mensagem altamente libertadora porque dá espaço, pela primeira vez, à intenção.


O cristianismo retoma a ideia defendida por alguns filósofos de que religião não deve estar presente na política. Afinal, “o meu reino não é deste mundo” e “dai a César o que é de César”. Ideias inovadoras que beneficiaram as sociedades quando se defendia a liberdade. O humanismo cristão defendia que “todos somos irmãos” e a fraternidade instruía a amar o inimigo.


Os conceitos do cristianismo foram inovadores, pois viabilizou a possibilidade do questionamento, pois, se “todos são iguais perante deus” porque não temos direitos sobre à terra e sobre a sua riqueza? Esses novos conceitos abriram espaço para a ciência e o progresso, plantou as sementinhas do que futuramente foi chamado de democracia e certamente defendeu a paz e a igualdade entre os povos.

Quisera que as crianças aprendessem mais sobre o cristianismo do que sobre ovos e coelhos de chocolate. Que houvesse mais interesse para aprender e ensinar sobre o humanismo, a igualdade e a fraternidade. Quisera “lembrar que o Deus crucificado é, junto à ressurreição, a intuição mais radical de nossa fé. Fala-nos da fragilidade humana, assumida pelo mesmo Deus; fala-nos da paz como único caminho, frente a outras sendas construídas sobre o rancor, a violência ou a lei implacável; fala-nos do amor como a maior transgressão em um mundo que etiqueta muitas pessoas como indignas de serem amadas.


Há lugares e situações de vida diante dos quais não podemos deixar de exclamar: “Sempre é Sexta-feira Santa!”: miséria, exaltação da violência, relações centradas na intolerância, solidão, sonhos quebrados...


"Cenas da Paixão de Cristo" - Hans Memling Pintor flamengo (c. 1433-1494)


* Jussara Prates é escritora, pesquisadora e produtora cultural, transita em diversas áreas da cultura com obras publicadas sobre educação, projetos escolares, educação antirracista, história, história de municípios, literatura, diversidade e educação para o patrimônio. Ativista pela democratização e acesso a cultura é defensora da educação para o patrimônio como forma de valorização e apropriação do patrimônio cultural como elementos geradores de cidadania e identidades. Foi membra do Colegiado Setorial de Memória e Patrimônio do Rio Grande do Sul, trabalhou na área da Gestão da Cultura, foi uma das idealizadoras e Diretora do Museu e Arquivo Municipal de Portão. Coordenadora dos processos de tombamento do primeiro Patrimônio Natural, o Pinheiro Multissecular e do primeiro Registro de Patrimônio Imaterial, o Festival Internacional de Folclore e uma das Curadoras do Memorial Histórico do Parque do Imigrante, todos em Nova Petrópolis/RS. Foi Diretora de Cultura e Secretária Adjunta de Educação, Cultura e Desporto de Nova Petrópolis. É Conselheira de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul, participou como conselheira da 6ª Conferência Estadual de Cultura e representou o CEC/RS na 4ª Conferência Nacional de Cultura em Brasília, atuando ativamente na construção da Política Nacional de Cultura. Atualmente exerce a função de secretária da Diretiva do Conselho Estadual de Cultura/RS.

**Historiadora, Bióloga, Conservadora e Restauradora de Acervos, Pós -graduada em Gestão de Arquivos; Supervisão Educacional; Coordenação Pedagógica; Ecologia e Desenvolvimento Sustentável; Botânica; Zoologia e Diversidade, Cultura e Etnicidade



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1 Comment


Jussara Prates
Jussara Prates
Dec 13, 2020

Boa leitura!

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