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Renata Soares de Paula

A INFÂNCIA NO LADO DE DENTRO

Bem-vindo (a)!

O blog SINAPSE CULTURAL é um canal de compartilhamento de ideias, opiniões e conhecimentos sobre Educação, Arte, Cultura, Informação, Política e Saúde nas suas complexas formas de manifestações.

Por:

*Renata Soares de Paula

Infâncias tão conhecidas e tão desconhecidas,

tão saudáveis e tão doentes,

tão inteiras e tão fragmentadas,

tão presas e tão livres,

tão verdadeiras e tão escondidas.

Um mundo de infâncias a desvendar.

(Adriana Friedman)


Quando pensamos em infância nos remetemos à liberdade de brincar, de estar em convívio com outras crianças, com adultos e compartilhando de diversos espaços. O meio em que a criança se relaciona vai contribuir para a sua formação, para a construção do seu conhecimento, das suas emoções, da sua capacidade de interagir e viver socialmente. As crianças se constituem através das relações de amor nos ambientes que convivem.


Infelizmente ainda se percebe em nossa sociedade filhos frutos do desamor, de lares instáveis emocionalmente ou crianças sem um lar. Em situações conflituosas sua formação não ocorre saudavelmente. Porém, quando elas se relacionam num ambiente saudável, rico de estímulos é favorecido a qualidade na sua constituição enquanto ser humano.


É importante garantir à infância a naturalidade de ser criança. “Fundamental é perceber cada criança, cada alma, regar com atenção cada rebento. Não podemos criar fases do brincar, idades para disso ou daquilo... A palavra é da criança. Seus gestos, desenhos, adjetivos e verbos, suas construções e seus desejos por materiais indicam os percursos de sua alma. As infinitas possibilidades que as crianças oferecem...” ( PIORSKI, 2016, p. 34). A criança precisa viver de forma criadora a sua infância, a suas curiosidades, seus experimentos de maneira que possa aprender com suas próprias percepções de mundo.


A infância não pode ser vista com uma visão adulta, em que se transforma em um produto, num período curto de passagem. Porém, se nos permitimos refletir sobre o momento atual, muitas vezes nos deparamos com concepções que desconsideram o que realmente se defende. “O conceito de infância está sempre em construção e varia conforme cada realidade e grupo infantil”. (FRIEDMAN, 2020, p. 31). É imprescindível contextualizar a realidade, quais referências vão ser usadas para descrever tal conceito, incluindo a classe social e a concepção adulta sobre infância. Porque “ser crianceira” na sociedade atual é muito diferente de ser criança em períodos anteriores. Ela tem papel ativo no seu processo de socialização e, por meio das interações sociais, significa e interpreta o mundo; “em suas práticas, existe, para além da estereotipia, uma singularidade nas produções simbólicas e artefatos infantis que configuram o que a sociologia da infância define como cultura infantil” (SARMENTO, 2004, p. 20).


Portanto, ser criança na sociedade contemporânea, muitas vezes, é viver mais o lado de dentro das relações. Traz uma experiência de vivência mais atravessada pela mídia, vive mais voltada ao ambiente doméstico e pelo consumo do “ter”, como algo de fácil acesso e dentro da normalidade. Para Neil Postman (1999) estamos assistindo ao desaparecimento da infância devido ao surgimento do sistema de mídia, que fornece informações acerca dos “segredos do mundo adulto”, desfazendo a separação estabelecida entre este e o mundo infantil.


Desta forma, a criança está imersa ao um mundo diferente ao que nós vivemos, que ainda se conserva uma visão mais da infância do lado de fora, das brincadeiras na rua e a inocência em termos de conhecimento para vivenciar a vida social. Infelizmente, a rua virou um lugar mais hostil, sujeitando a criança estar mais do lado de dentro da sua experiência. Encontramos um ambiente mais inseguro, permeado de preocupação e vulnerabilidade.


Todo esse contexto acaba tornando o ambiente interno o espaço aonde as crianças tem suas vivências, um local que a família considera mais adequado para brincar. Porém, não significa que limitá-la nessa condição será o ideal. Se não se pode ter a liberdade que tivemos, podemos oferecer momentos mais livres e naturais com a nossa presença.

Portanto, há um questionamento que inquieta meus pensamentos: Será que apenas hoje, no cenário de pandemia, que nossas crianças estão confinadas no lado de dentro? Acredito que já havia esse confinamento há muito tempo, apenas não estávamos prestando a devida atenção. Muitas crianças já vivem a infância de maneira limitada, sem muito acesso e disponibilidade aos espaços livres, já estão com seu emocional esgotado em meio a tantas tarefas que os adultos tentam suprir a falta da sua presença.


Os pais têm a preocupação de oferecer o melhor para os seus filhos, oportunizar o que eles consideram essencial, que não tiveram acesso ou possibilidades quando crianças, mas acabam exagerando no excesso de atividades, compromissos na rotina da criança. Todos nós temos a nossa concepção de infância, que faz parte da nossa concepção de vida e da nossa maneira de ver a criança e o seu brincar. Se questionarmos a maioria das pessoas sobre a primeira infância é notável que a preocupação esteja em torno do futuro da criança, sobre o que ela “vai vir a ser”, mesmo que se pense que a criança é um sujeito produtor de cultura, ativo, curioso e descobridor, a grande preocupação é dada ao preparo dela para o futuro. “As crianças são mensagens vivas que enviamos a um tempo que não veremos” ( POSTMAN, 1999, p. 11) É imprescindível refletir que somente terá um bom futuro a criança que viveu plenamente seu presente, sua infância.


Quando pensamos no presente, em rotinas, tempo preenchido para as crianças se desenvolverem melhor, esquecemos que o brincar, o não “fazer nada” faz parte da infância. Ocupar o tempo da criança com liberdade de usar esse tempo. Como Rubem Alves ressalta em suas sábias palavras “se as crianças usam relógios, elas os usam como se fossem brinquedos”. A criança não precisa seguir tempo, ela faz seu tempo, da sua maneira inocente e criativa. Mas, ainda vive do lado de dentro seu cotidiano, falta extravasar mais na natureza, tocar, sentir e viver a infância com liberdade. Como Stacciolli (2013) argumenta as crianças brincam pouco ao ar livre e levam uma vida sedentária.

As experiências motoras tendem a ser do tipo programado (aula de natação...) e não do tipo lúdico e espontâneo. É imprescindível lembrar que a infância tem o seu valor no brincar, se delineia na brincadeira, no faz de conta, sendo protagonista da sua construção e conhecimento. Precisamos propiciar a criança um ambiente que possa se desenvolver com qualidade, rico em estímulos.


Seria importante pensar que tipo de sociedade se quer para o futuro, qual o sentido de estimular tanto a vida adulta no tempo da criança. Interessante e pertinente que a criança tenha acesso a atividades diversas, que agregam significado e descobertas, porém, necessitam de liberdade para brincar livremente, de não fazer nada, ou fazer tudo.

É vital para criança brincar de ser ela mesma, buscando, sentindo a sua existência. Essencial entender que quando uma criança vem ao mundo o “habitar” é o primeiro ato e quando ela habita vai se identificando, reconhecendo e se formando enquanto sujeito. O ambiente habitado se faz importante e necessita ser potente e acolhedor. A presença do adulto nesse processo e nesse brincar é primordial, mas isso não significa que precisa orientar e conduzir integralmente. Ele não é o centro, mas promove condições e aprende com a criança. Precisa acolher e escutar os saberes das crianças, o que elas sabem e o que não sabem sobre o mundo.

Enfim, o adulto brincante precisa ter a sensibilidade e a disponibilidade de estar com a criança plenamente e de forma saudável, com qualidade de tempo e não quantidade, pois não é a quantidade de horas que se fazem importante, mas a riqueza de momentos significativos. Há uma grande necessidade de engrandecer o movimento da criança, dar autonomia e liberdade de brincar. Nesse período de pandemia o ser criança precisa se reinventar ainda mais, para não perder a sua essência, já abalada pelo lado de dentro da infância que muitos já vivenciam.

Esse lado de “dentro”, hoje e antes da pandemia, deveria ser um ambiente de amplas possibilidades ofertadas pelo adulto, que sempre será a figura que norteará a criança no seu desenvolvimento pleno. Acredito que as experiências lúdicas, o brincar seja um motivo de ressignificar nesse cenário atual, com menos acesso a mídia e mais propostas vivas, porque essa dinâmica das telas tira o desejo da criança interpelar e conhecer o lado “de fora” da sua infância, do mundo que está a ser oferecido com tantas possibilidades. Piorski ( 2016) nos aproxima desse pensamento, que é preciso propiciar uma vida de crianças inteiras e verdadeiras, oferecendo espaço para planejar, fazer, desfazer, encontrar, entrar em conflito, reelaborar e brincar em todos os ambientes, externos e internos.

O brincar é a forma mais sublime em que a criança estrutura seu tempo, seu mundo. “Ser criança e viver a infância depende muito das referências e expectativas da família, da escola e da comunidade que cada uma cresce.” ( FRIEDMAN, 2020, p. 31) A infância sempre será a passagem mais importante para o desenvolvimento humano, pois através dela que o ser humano se transforma de maneira humana, criativa, define seus valores, aprende sobre o mundo e transpassa tudo que vivenciou para novas gerações.

Uma infância se espalha por toda a vida e por todos os lados...


* Renata Soares de Paula - Formada em Letras, Especialista em Educação Infantil, Graduanda em Pedagogia, cursando especialização em Psicopedagogia Clínica/Institucional e Neuropsicopedagogia Clínica/Institucional. É professora da rede municipal em Portão/RS e autora da página @sercrianceira (espaço para repensar a infância e valorizar o ser criança).




Fontes Bibliográficas:

As culturas da infância nas encruzilhadas da 2ª modernidade. In: SARMENTO, Manuel Jacinto; CERISARA, Ana Beatriz (Coords.). Crianças e miúdos: perspectivas sociopedagógicas sobre infância e educação. Porto: Asa, 2004. ______. Visibilidade Social e estudo da infância. In: VASCO.

FRIEDMANN, Adriana. A vez e a voz das crianças: escutas antropológicas e poéticas das infâncias. São Paulo: Panda Books, 2020.

POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Tradução: Susana Menescal de Alencar Carvalho e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.

PIORSKI, Gandhy. Brinquedos do chão: a natureza e o imaginário do brincar. São Paulo: Peirópolis, 2016.

STACCIOLI, Gianfranco. O diário de acolhimento da infância/ Gianfranco Staccioli; tradução ( do italiano) Fernanda Ortale & Ilse Paschoal Moreira- Campina , SP: Autores Associados, 2013.

Fonte das imagens:

https://pixabay.com/pt/


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