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A “PROLIFERAÇÃO” DA ESCOLA NORMAL NA REPÚBLICA VELHA (1889-1930): O QUE MUDOU NESSES QUASE CEM ANOS?

Lidiane Fraga

Por: Lidiane Fraga

Em 1889, quando o Brasil deixa de ser um império, passando a ser uma república e para romper com as amarras do antigo regime monárquico, os republicanos lançam mão de uma série de medidas, provocando a reestruturação das velhas fórmulas de controle, como também estabelecendo novas condutas, novas orientações concebidas como projetos alternativos para conservar ou reformular a nova ordem social.


A sociedade republicana foi marcada por uma série de transformações, através de elementos, alguns, já presentes durante o império, mas que gradualmente tornam-se cada vez mais significativos e se transformam numa nova ordem social, destacando um sistema de valores da civilização urbano-industrial: o processo imigratório, que foi um importante elemento na alteração do mercado de trabalho e das relações trabalhistas, pois a presença de imigrantes, principalmente alemães, provocaram uma nova postura diante da escolarização, até então insuficiente para a maioria da população e restrita às classes mais altas A vinda dos europeus incentivou a ampliação das atividades comerciais, bem como a circulação de jornais e revistas, mudando padrões de comportamento existentes até então entre os brasileiros: a leitura era privilégio e passatempo das classes mais ricas, enquanto a população mais pobre era condenada ao analfabetismo ou ao analfabetismo funcional (assinar seu nome e fazer cálculos básicos era o suficiente).


Entretanto, em meio a tantas mudanças, , fazia-se urgente a “remodelagem” do povo ao novo regime: o desenvolvimento do modo capitalista de produção e de vida, durante a República Velha, que ocasionou o aceleramento da divisão social do trabalho e exigiu níveis cada vez mais crescentes de especialização de funções, de que resultaram o aparecimento de novas camadas sociais e a diferenciação das antigas classes dominantes.


Essa alteração no tipo de sociedade que passa a existir pode ser percebida nas medidas tomadas em relação à educação, principalmente na década de 20: o entusiasmo pela educação e as frequentes reformas deixam claro o objetivo de democratizar a cultura, pela ampliação dos quadros escolares. Passa-se a cultivar a crença de que a através da multiplicação das escolas e da disseminação da educação, seria possível incorporar grandes camadas da população dentro do programa de progresso nacional e colocar o Brasil no caminho das grandes nações do mundo, além de formar o novo homem-cidadão brasileiro A consequência desse estado de espírito foi o aparecimento de amplas discussões e frequentes reformas da escolarização. O que distingue a última década da Primeira República das que a antecederam foi justamente a preocupação em pensar e modificar os padrões de ensino e cultura das instituições escolares nas diferentes modalidades e níveis de ensino


Ao atribuírem tamanha importância ao processo de escolarização, há o preparo do terreno para que determinados intelectuais e “educadores” – principalmente “educadores profissionais” que aparecem nos anos 20 – transformassem um programa mais amplo de ação social num restrito programa de formação, no qual a escolarização era tida como o remédio para todos os males e para o progresso do país.


A profissionalização da educação provoca o aparecimento da Escola Normal, que representa a superestimação da escola primária que carregaria a “(...) bandeira de luta contra o analfabetismo. (...) o analfabetismo (...) máximo ultraje de um povo que vive a querer ingressar na rota da ‘moderna civilização”( Nagle, 1974:112). A alfabetização é encarada como o primeiro passo necessário da educação primária, e se considerava mais democrático ensinar a ler, escrever e contar à maioria das crianças, do que fornecer uma educação mais ampla, porém, para uma minoria apenas.


Ainda citando Nagle, sobre o funcionamento e organização da Escola Normal: “Com a reorganização do curso Normal, o reformador pretendeu estabelecer, de um lado, um ‘curso preparatório’ ou de ‘habilitação pedagógica’, com o objetivo de fornecer um preparo científico ao aluno durante três anos, e, de outro lado, um curso profissional ou de ‘proficiência didática’, de um ano, em que propriamente se ensinará a ensinar (...)”, (1974:220).


É importante ter presente que além de a preparação para o magistério ser uma necessidade que se impunha devido ao projeto de disseminação de um padrão cultural considerado ideal, que deveria começar pelos professores, o magistério constituía-se numa possibilidade de ascensão social para as camadas médias em expansão.

Vista como uma “sementeira” na qual os professores seriam formados dentro do novo espírito republicano, e divulgariam os novos valores e regras de cidadania para um número cada vez maior de alunos, os futuros cidadãos brasileiros. Os colonos e mesmo o ainda fraco proletariado urbano eram tidos como uma massa que deveria se modelada, um povo que não possuía identidade social e que por isso deveria ser conduzido pela educação.


O professor adequado era aquele que estava acima do comportamento comum da população, população esta que no discurso republicano deveria ser modificada gradualmente, pelo contato com a minoria intelectualizada. O professor não é apenas, nas concepções republicanas, um educador, mas sim um formador de caráter. Assim, a normalista republicana deveria ser um exemplo de virtude, assim como as religiosas católicas educadoras. Outro aspecto relevante era a de o magistério primário ser uma função predominantemente feminina, sendo que os cursos normais representavam o nível mais elevado de escolarização para as moças:

(...), abriram para as mulheres uma possibilidade de exercício profissional fora do lar, exercício este que encontrou no magistério público um campo privilegiado. Tratava-se de um trabalho de turno único, o que permitia à mulher continuar com sua tarefa fundamental, a maternidade e a educação dos filhos”, (Pratta, 2002:173).


Outro aspecto a se considerar era que o magistério era tido como uma extensão do trabalho doméstico e da própria maternidade, uma vez que os alunos deveriam ser educados como filhos. Assim, o magistério atende a duas demandas: era concebido com meio de ascensão social ao mesmo tempo em que mantinha os pilares da tradição cristã-lusitana, na qual a mulher estava subordinada ao controle masculino.


A questão que envolve a mulher e o magistério gira em torno de duas concepções: a primeira, de que a professora tinha em seu trabalho uma extensão de sua atividade doméstica e de sua vocação nata: a maternidade; e outra, de que a professora deveria ser solteira. Solteira para poder se dedicar integralmente ao magistério e na formação do cidadão idealizado pelo regime republicano, sendo que a pátria estava acima de seus interesses e desejos pessoais. É interessante perceber nessa ideia da professora solteira uma contradição: o Estado republicano se separa da Igreja, sendo que cada um é responsável por diferentes esferas que não mais se misturam. Entretanto, a professora solteira se aproxima muito da imagem religiosa da educadora católica, aquela que trabalhava por vocação, que abdicava até de sua própria vida pessoal em favor de um objetivo maior.


Louro diz que “assim, aquelas para quem a maternidade física parecia vedada estariam, de certa forma, cumprindo sua função feminina ao se tornarem, como professoras, mães espirituais de seus alunos e alunas”, (1997:465) O fato de uma mulher ser ao mesmo tempo solteira e professora acabava por amenizar a pressão que aquela sociedade conservadora exercia sobre as “solteironas” segundo a ideia de que a vocação natural de qualquer mulher era o casamento e a maternidade.


Desde as ultimas décadas do século XIX, há a necessidade de educação para a mulher, vinculando-a a modernização da sociedade, à higienização da família, à construção da cidadania dos jovens. A preocupação em afastar do conceito de trabalho toda a carga de degradação que lhe era associada devido à escravidão e em vinculá-la à ordem e progresso levou os administradores dessa nova sociedade a buscar as mulheres das camadas populares. Elas deveriam ser diligentes, honestas, ordeiras, asseadas.


Entretanto, a entrada das mulheres no magistério é marcada por opiniões diversas. Para alguns, as mulheres deveriam ser mais educadas do que instruídas, ou seja, para elas, a ênfase deveria recair sobre a moral, sobre seu caráter, sendo suficientes pequenas doses de instrução. Também, a educação feminina não poderia ser concebida sem uma sólida formação cristã, que seria a chave principal de qualquer projeto educativo. Para outros, inspirados pelas ideias positivistas e cientificistas, justificava-se um ensino para a mulher que, ligado à função materna, afastasse as superstições e incorporasse as novidades da ciência, em especial, das ciências que tratavam das tradicionais ocupações femininas, como a puericultura (criação de crianças), psicologia e economia doméstica. Há ainda os que consideravam uma insensatez entregar às mulheres usualmente despreparadas, portadoras de “cérebros pouco desenvolvidos” pelo seu “desuso” a educação das crianças.


Assim, a professora terá de ser produzida em meio a várias contradições, já que ela deve ser, ao mesmo tempo, dirigida e dirigente, profissional e mãe espiritual, disciplinada e disciplinadora.


O processo de feminização do magistério também pode ser considerado como resultante de uma maior intervenção e controle do Estado sobre a docência – a determinação de conteúdos e níveis de ensino, a exigência de credenciais dos professores, horários, livros, salários. Daí pode-se compreender o histórico de baixos salários que marca a história do magistério, pois, como uma extensão do trabalho materno e doméstico, uma “ocupação secundária” que a mulher abandonaria com o casamento sendo, então, sustentada pelo marido, não requeria maiores remunerações. Além disso, a mulher "domesticada” pela escola normal para ser e ter jeito de professora mantinha-se alheia às discussões de ordem política, religiosa e, consequentemente, trabalhista, pois a polêmica e a discussão eram contra a natureza feminina.


A escola normal, por sua vez, respondia às demandas de uma nova sociedade, na qual, instruir, formar e civilizar eram as palavras de ordem, formando um professor que não era mais visto apenas como o mestre que dominava muitas informações sobre os mais variados assuntos; mas que, em primeiro lugar, deveria ser um profissional detentor dos recursos para desenvolver nos alunos as habilidades necessárias à apreensão e ao desenvolvimento de conhecimentos voltados para seu bem-estar e, consequentemente, para o bem estar social. A educação se apresentava como a possibilidade de realização da revolução dentro da ordem, ou seja, revolucionar no sentido de adequar o cidadão brasileiro a esse novo sistema, de modo que essa adequação não significava mudanças nas estruturas, mas um enquadramento a elas.


Também a proclamação da república pode ser vista como o momento a partir do qual novos modelos femininos passaram a ser mais reforçados. Esse período promoveu intensas transformações e remanejamentos nas diversas classes sociais que vinham se configurando no decorrer do século XIX. Muitas das imagens idealizadas das mulheres sofreram mudanças e intensificações por conta das transformações que se operaram com a passagem para o regime republicano, sendo as professoras normalistas um bom exemplo disso.


Assim, os discursos sobre a educação e o ensino alimentavam-se de novas teorias, incorporavam novos interesses, refletiam e constituíam novas relações de poder e é nesse contexto que as escolas normais são disseminadas, um contexto marcado pela reestruturação política, a adesão a novos valores e atitudes, um rompimento com a tradição monárquica. Entretanto, tais mudanças são mudanças controladas, pois mudanças radicais são revolucionárias e não eram esses os interesses em jogo naquele momento e a Escola Normal aparece como um dos mecanismos para implantar tais modificações.


Logo, percebe-se ainda nos dias atuais, que o exercício do magistério é predominantemente feminino: a professora é a responsável pela condução moral e pedagógica de seus alunos, sem abandonar a questão afetiva que envolve todo o processo de ensino-aprendizagem. Se instinto maternal continua tão presente quanto na década de 20, o que vez por outros causa debates e discussões a cerca dos termos “tia” (ou seja, por mais profissional que seja, a imagem da professora permanece ligada a de uma segunda mãe ou familiar).


Além das questões afetivas que se apresentam no contexto escolar, a dupla ou tripla jornada das professoras é algo comum: a fim de obter uma renda razoável, a maioria das profissionais assume dois ou três turnos de aula, além de manter seu status quo de esposa e mãe em meio a tudo isso.


Como atividade notadamente feminina e que seria apenas “complemento à renda familiar”, pois o marido seria o principal provedor do lar, a professora estava condenada a receber salários baixos, pouco reconhecimento social e profissional além de enfrentar jornadas diversas: professora, mãe, esposa, dona de casa.


Os pilares que firmam a escola normal na década de 20 ainda podem ser percebidos no exercício atual do magistério: salários inferiores mesmo com curso superior, comparado a outros de mesmo nível, desvalorização social, pouco incentivo do governo para melhoria da qualidade de trabalho bem como para uma formação melhor e mais completa para os professores.


Vivemos hoje, o centenário do surgimento das escolas de magistério: mas o que de fato, realmente mudou em cem anos?


*Lidiane Fraga: É graduada em História pela Unisinos e especialista em Arteterapia pela universidade Feevale. Atua como Professora das redes municipais de Portão e São Leopoldo.



Para saber mais:

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

CARVALHO, M.M.C. A escola e a república. São Paulo: Brasiliense, 1989.

COSTA, Emilia Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Brasiliense, 1985.

LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORE, Mary (Org.) História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/Editora Unesp, 1997.

NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. São Paulo:EPU, 1974.

PRATTA, Marco Antonio. Mestres, Santos e Pecadores: educação, religião e ideologia na Primeira República: São Carlos: RiMa,2002.

Vídeo:

https://www.youtube.com/watch?v=LjSYOI9MflU


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