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O Deslocamento de Autor: quando reler é reencontrar um fantasma com a sua letra

Atualizado: 16 de mai.

Helena Klein


Livros empilhados sobre uma mesa de madeira escura, predominância de cores que variam do marrom ao branco.
Livros empilhados sobre uma mesa de madeira escura, predominância de cores que variam do marrom ao branco.

Há um fenômeno curioso, íntimo e, por vezes, perturbador que me atravessa — e talvez toque outras pessoas que escrevem também. Um gesto tão recorrente que decidi batizá-lo: deslocamento de autor. Uma teoria afetiva, confessional, subjetiva. Mas impossível de ignorar.


É o que acontece quando você relê um texto seu, escrito anos atrás, e tem a nítida impressão de que foi outra pessoa quem escreveu aquilo. As palavras são suas, o ritmo te parece familiar, até as emoções contidas ali soam conhecidas — mas algo está fora do lugar. Como um perfume antigo esquecido numa gaveta: é seu, mas de uma versão sua que já não existe mais.


Foi exatamente assim que me senti ao reler Insanis. Uma das frases mais compartilhadas da obra diz: “Nunca subestime uma pessoa em luto. Ela já fez amizade com o abismo.” Li e pensei: fui eu quem escreveu isso?


Do mesmo modo, ao folhear Horóscopo da Noite e Horóscopo da Tarde, me peguei sorrindo com a história da Maitê e do Marcelo. Morgana e Rambo — personagens que guardo com carinho — me soam quase irreais. Reconheço o estilo, a intenção, o traço... mas me sinto leitora daquilo tudo. E não mais autora.


Ao revisitar Insanis em busca de elementos para uma releitura sci-fi, algo em mim tremeu — não de dor, mas de distância. A frase continua potente. A linguagem, ainda minha. Mas o corpo que a escreveu não é mais o mesmo. A dor, antes imaginada, agora me habita. Aquilo que era ficção passou a ser minha verdade. E lá atrás, eu fui tão certeira… sem nem saber por quê.


É nesse espaço entre o que fui e o que escrevi que mora o deslocamento de autor: quando o escritor se torna leitor de si mesmo com estranhamento. A escrita deixa de ser espelho — passa a ser fotografia. Congelada. Real. Testemunha de uma emoção passada que, por alguma razão, ainda pulsa.


Não é desmemória. É amadurecimento. É travessia.


Na psicanálise, Freud fala do unheimlich, o “estranho familiar”. Roland Barthes nos oferece a “morte do autor”: aquele momento em que o texto se emancipa da intenção de quem o criou. Talvez o deslocamento de autor seja uma fusão dos dois: quando sobrevivemos à própria escrita, e ela passa a existir sem pedir permissão.


Escrever é um ato de presença.

Reler é um exercício de ausência.

Porque o eu que escreveu já partiu.

Deixou rastros, metáforas, cicatrizes gramaticais — mas partiu.

E tudo bem.


A beleza está em aceitar que a gente escreve para se deixar, e depois lê para se reencontrar — ainda que em ruínas, ainda que com outro olhar.


Então, se algum dia você reler um texto antigo e se sentir uma visitante numa casa que você mesma construiu...

Bem-vindo ou bem-vinda.

Você acaba de experienciar o deslocamento de autor.



Helena Klein é hoteleira, psicanalista clínica, professora de inglês e agente cultural. Foi Diretora do Núcleo de Arquivo Histórico e Biblioteca de Nova Petrópolis/RS. É membro do Coletivo de Escritores de Nova Petrópolis e conselheira no Conselho Municipal de Políticas Públicas Culturais, no eixo Livro, Literatura e Biblioteca. Atualmente, é Secretária do Colegiado do Estado Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca. Acadêmica do 8º semestre de Licenciatura em Letras – Português, é integrante do diretório acadêmico de Letras Mario Quintana da UCS como Diretora de Cultura EAD e é caloura na graduação de Escrita Criativa/UNIASSELVI.

É autora de romances, contos e crônicas, participou de oficinas literárias e publicou obras coletivas como Contos Contemporâneos. Incentivada por Alcy Cheuiche, publicou A Caixa de Brinquedos - Die Spielzeugekiste, A Caixa de Brinquedos – o ano da pandemia e Efeitos do Amor. Lançou na Bienal Internacional do Livro de SP/2024 o livro Short Stories for Fearless Kids. Além disso, tem várias crônicas e contos em diversas antologias nacionais e internacionais; e e-books como Insanis, Hver Torsdag er Magi e A Casa. Desde 2024, ministra a oficina La Petite Fabrique de Littérature. Faz parte da startup Sinapse Cultural, que tem como premissa a economia criativa e o incentivo e apoio aos produtores culturais: www.sinapsecultural.com.br.

Referências:

FREUD, Sigmund. O estranho (Das Unheimliche). In: FREUD, Sigmund. Obras completas – Volume XVII (1917-1919): Um difícil caminho da transferência / O estranho. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 261–293.

BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 67–70.

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