O Deslocamento de Autor: quando reler é reencontrar um fantasma com a sua letra
- Helena Klein
- 15 de mai.
- 3 min de leitura
Atualizado: 16 de mai.
Helena Klein

Há um fenômeno curioso, íntimo e, por vezes, perturbador que me atravessa — e talvez toque outras pessoas que escrevem também. Um gesto tão recorrente que decidi batizá-lo: deslocamento de autor. Uma teoria afetiva, confessional, subjetiva. Mas impossível de ignorar.
É o que acontece quando você relê um texto seu, escrito anos atrás, e tem a nítida impressão de que foi outra pessoa quem escreveu aquilo. As palavras são suas, o ritmo te parece familiar, até as emoções contidas ali soam conhecidas — mas algo está fora do lugar. Como um perfume antigo esquecido numa gaveta: é seu, mas de uma versão sua que já não existe mais.
Foi exatamente assim que me senti ao reler Insanis. Uma das frases mais compartilhadas da obra diz: “Nunca subestime uma pessoa em luto. Ela já fez amizade com o abismo.” Li e pensei: fui eu quem escreveu isso?
Do mesmo modo, ao folhear Horóscopo da Noite e Horóscopo da Tarde, me peguei sorrindo com a história da Maitê e do Marcelo. Morgana e Rambo — personagens que guardo com carinho — me soam quase irreais. Reconheço o estilo, a intenção, o traço... mas me sinto leitora daquilo tudo. E não mais autora.
Ao revisitar Insanis em busca de elementos para uma releitura sci-fi, algo em mim tremeu — não de dor, mas de distância. A frase continua potente. A linguagem, ainda minha. Mas o corpo que a escreveu não é mais o mesmo. A dor, antes imaginada, agora me habita. Aquilo que era ficção passou a ser minha verdade. E lá atrás, eu fui tão certeira… sem nem saber por quê.
É nesse espaço entre o que fui e o que escrevi que mora o deslocamento de autor: quando o escritor se torna leitor de si mesmo com estranhamento. A escrita deixa de ser espelho — passa a ser fotografia. Congelada. Real. Testemunha de uma emoção passada que, por alguma razão, ainda pulsa.
Não é desmemória. É amadurecimento. É travessia.
Na psicanálise, Freud fala do unheimlich, o “estranho familiar”. Roland Barthes nos oferece a “morte do autor”: aquele momento em que o texto se emancipa da intenção de quem o criou. Talvez o deslocamento de autor seja uma fusão dos dois: quando sobrevivemos à própria escrita, e ela passa a existir sem pedir permissão.
Escrever é um ato de presença.
Reler é um exercício de ausência.
Porque o eu que escreveu já partiu.
Deixou rastros, metáforas, cicatrizes gramaticais — mas partiu.
E tudo bem.
A beleza está em aceitar que a gente escreve para se deixar, e depois lê para se reencontrar — ainda que em ruínas, ainda que com outro olhar.
Então, se algum dia você reler um texto antigo e se sentir uma visitante numa casa que você mesma construiu...
Bem-vindo ou bem-vinda.
Você acaba de experienciar o deslocamento de autor.
Helena Klein é hoteleira, psicanalista clínica, professora de inglês e agente cultural. Foi Diretora do Núcleo de Arquivo Histórico e Biblioteca de Nova Petrópolis/RS. É membro do Coletivo de Escritores de Nova Petrópolis e conselheira no Conselho Municipal de Políticas Públicas Culturais, no eixo Livro, Literatura e Biblioteca. Atualmente, é Secretária do Colegiado do Estado Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca. Acadêmica do 8º semestre de Licenciatura em Letras – Português, é integrante do diretório acadêmico de Letras Mario Quintana da UCS como Diretora de Cultura EAD e é caloura na graduação de Escrita Criativa/UNIASSELVI.
É autora de romances, contos e crônicas, participou de oficinas literárias e publicou obras coletivas como Contos Contemporâneos. Incentivada por Alcy Cheuiche, publicou A Caixa de Brinquedos - Die Spielzeugekiste, A Caixa de Brinquedos – o ano da pandemia e Efeitos do Amor. Lançou na Bienal Internacional do Livro de SP/2024 o livro Short Stories for Fearless Kids. Além disso, tem várias crônicas e contos em diversas antologias nacionais e internacionais; e e-books como Insanis, Hver Torsdag er Magi e A Casa. Desde 2024, ministra a oficina La Petite Fabrique de Littérature. Faz parte da startup Sinapse Cultural, que tem como premissa a economia criativa e o incentivo e apoio aos produtores culturais: www.sinapsecultural.com.br.
Referências:
FREUD, Sigmund. O estranho (Das Unheimliche). In: FREUD, Sigmund. Obras completas – Volume XVII (1917-1919): Um difícil caminho da transferência / O estranho. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 261–293.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 67–70.
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