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O blog SINAPSE CULTURAL é um canal de compartilhamento de ideias, opiniões e conhecimentos sobre Educação, Arte, Cultura, Informação, Política e Saúde, nas suas complexas formas de manifestações.
Por: Lidiane Fraga
A passagem de outubro para novembro é marcada por uma variante de misticismo, crenças importadas e até brincadeiras. Em 31 de outubro muito já se comemora, não sem críticas, o Hallowenn. Baseada em fantasias e coleta de doces a maioria não se dá conta da tradição druida na qual seria o dia em que o véu entre vivos e mortos se dissipava, possibilitando a circulação dos espíritos pelo mundo mortal. Dia primeiro de novembro é dedicado a Todos os Santos, ou seja, uma forma de não deixar de fora ou esquecer de nenhum santo. Já no dia 2, celebra-se, se esse é o verbo mais adequado, o dia de finados. Na tradição brasileira, não é um dia feliz. É dia de visitar seus mortos, prestar homenagens, decorar túmulos. Ocasião que, uma maioria, gostaria de poder evitar, pois o cemitério nos recorda sobre a finitude da vida. Ninguém escapa da morte. A partir do dia que nascemos, cada dia passado nos aproxima mais dela, mas consigamos um pouco de conforto no humor sarcástico de Mário Quintana: “A eternidade deve ser muito chata. Pelo menos aqui, aguentamos só os chatos da nossa época”.
Segundo Freud:
“O doloroso enigma da morte, contra o qual ainda não se encontrou remédio algum, nem provavelmente se encontrará. Com essas forças, a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável: ela nos traz à mente, uma vez mais, a nossa fraqueza e a nossa impotência”(p.12)
Logo, para Freud existe um enorme conflito entre a realidade da morte, da qual não é possível fugir e nossa constância em negar a finitude da vida. Independente do lugar, da Cultura, da religião, cada povo tem suas próprias manifestações diante da morte.
O Brasil, iniciado com a colonização portuguesa traz a cultura da Península Ibérica: lamentar seus mortos, chorar, manter o luto. Missas, preces, orações pela alma do morto e sua salvação faziam parte do pacote. Mas não apenas isso: a vida do finado na terra não parecia ser tão relevante quanto sua posição pós morte. Era tradição no Brasil colônia enterrar seus mortos dentro das igrejas e não em cemitérios. Acreditava-se, que a igreja, como o local onde se conectava com Deus (lembremos aqui que falamos da tradição católica, religião oficial do império). Logo, a casa de Deus também seria a casa onde o corpo descansaria pela eternidade, muito perto de Deus. Aliás, quanto mais perto do altar o corpo fosse enterrado, maiores suas chances de salvação e redenção. Desnecessário mencionar que as primeiras fileiras eram ocupadas pelos mais abastados. Aos menos privilegiados, um cantinho.
Entretanto, assistir à missa com um corpo em decomposição logo abaixo do assoalho da igreja não era nada agradável. O cheiro pútrido tomava conta do ambiente. Mas não era apenas isso: a falta de higiene, sanitarização, somados a tal prática facilitou a propagação de doenças.
Conforme Blume:
Também em São Leopoldo, defensores das teorias de higiene (...) tinham como meta simplificar os atos fúnebres (...)evitando possíveis formas de contágio. Eles consideravam que o ato de morrer não deveria ser compartilhado com toda a comunidade (...) (p163)
O mesmo já não ocorria nas colônias alemãs. Ao abrirem suas picadas, uma das primeiras preocupações dos imigrantes era a fundação de um cemitério, pois diante de um ambiente altamente hostil, a morte sempre rondava. Não raro, pequenos cemitérios datados do século XIX são encontrados no interior de localidades ocupadas por imigrantes de origem européia.
A mudança do rito fúnebre não foi algo simples: houve a necessidade de criar toda uma nova ideologia na qual o cemitério era campo santo, tão válido quanto o interior da igreja. Comumente eram instalados no entorno da igreja, situação que aos poucos vai se alterando.
A maioria das igrejas ocupa lugar central nas cidades. Um cemitério no seu entorno trazia consequências, principalmente durante epidemias, quando os corpos precisavam ser enterrados rapidamente e longe para evitar maiores contaminações.
Aos poucos, os cemitérios passaram ocupar áreas mais distantes dos centros urbanos.
Já no final de 1870, por exemplo, São Sebastião do Cai se movimentava através da Câmara Municipal para adquirir terras que foram finalmente adquiridas em 1882, no subúrbio da localidade. Uma preocupação foi não criar um cemitério único: católicos e luteranos eram enterrados no mesmo cemitério, divido por um ruela. O mesmo ocorre com indigentes, suicidas e pessoas sem religião.
A mesma situação de São Sebastião do Caí é vivenciada em São Leopoldo: o cemitério original se encontrava nas proximidades onde hoje é a área da praça e da biblioteca. Mas as constantes epidemias, principalmente de cólera e de gripe espanhola, fazem com que a cidade repense o local onde enterrar seus mortos, longe dos centros urbanos.
Fonte: Google maps É possível perceber, mesmo sendo uma imagem atual, que o cemitério ficava afastado do centro. Com o acelerado processo de urbanização, bairros foram surgindo em seu entorno
É importante também mencionar o papel do estado nessa situação: muitos cemitérios passam a ser administrados pelo poder público, de forma laica. Aqueles que não pertenciam a uma igreja, não tinham condições financeiras, suicidas que, em algumas regiões lhes eram negados o campo sagrado e indigentes passam a ocupar esse espaço.
Hoje os cemitérios não se encontram afastados dos centros urbanos, embora estivessem afastados, foi a urbanização que se aproxima deles. As questões sobre higiene e sanitarização continuam: mau cheiro contaminação do lençol freático por chorume cadavérico, espaços cada vez mais cheios, necessitando de ainda mais espaço indisponível.
Tratando de cultura, cemitérios não são opções viáveis para algumas: os Wari que viviam nas florestas a oeste do Brasil, sem contato com a civilização até 1960 praticavam o canibalismo, ou mais adequado, a antropofagia. A diferença se encontra no objetivo, não no consumo: no canibalismo a carne humana é consumida por gosto, prazer ou necessidade. A antropofagia faz parte de um complexo ritual no qual o corpo do falecido é consumido por seus pares para adquirir sua força e poder. Entretanto, tal rito não é prazeroso: os Wari costumavam deixar o corpo exposto por vários dias, sob o clima quente da floresta, até o momento em que o corpo, já em decomposição seria consumido. Não é difícil pensar que não era algo prazeroso. A família do morto não participava da prática, somente os demais membros da tribo. Após consumida, os ossos eram cremados, a oca e as plantações do falecido queimados e sua família ficava sob os cuidados da tribo. Os laços de compaixão e cuidado eram ainda mais fortalecidos. Em contato com o homem branco em 1960, os Wari foram proibidos de consumir a carne humana, além de adquirir várias doenças até então inexistentes.
Tribo Wari
Fotógrafo: desconhecido
Fonte: acervo do Instituto Ambiental/ Pib Sociambiental
Por mais repugnante e desrespeitoso para o leitor possa ser ler sobre isso há uma justificativa: os Wari consideravam sagrada todo tipo de carne, animal ou humana. Para eles era inconcebível que o corpo fosse enterrado e apodrecesse. O extremo oposto do que acontece na Europa e América do Norte onde o embalsamamento busca justamente a conservação do corpo.
Ritos novos, entre eles, a cremação, já são novas opções que aos poucos vão sendo aceitas, embora com imposições religiosas. As preocupações ambientais em relação aos cemitérios têm aumentado cada vez mais e novas opções de dar fim ao corpo. Claro, algo complicado na medida que entra em conflito com os dogmas de diversas religiões.
Em tempos de COVID há uma nova forma de vivenciar os ritos fúnebres: caixões fechados, poucas pessoas no recinto, horário limitado para no máximo 2 horas. Até mesmo a despedida foi antecipada. A questão é que pandemias mudam nossa forma de viver e mesmo passadas, continuam determinando novos comportamentos.
Daniel Defoe, escreve de 1722 sobre a peste negra que dizimou a Europa. Comparemos suas palavras ao que presenciamos hoje:
Que o enterro dos mortos com peste ocorra nas horas mais convenientes (...) nenhum vizinho ou amigo pode acompanhar o corpo até a igreja ou entrar na casa contaminada (...). Nenhum cadáver de morto de peste deve ser enterrado ou permanecer na igreja nas horas das rezas ou das missas. Nenhuma criança pode estar presente (...) As covas devem ter pelo menos seis pés de profundidade. (p.56)
Aparentemente, as formas de enfrentamento da morte são semelhantes entre 1722 e 2020. O que pode ser confirmado pelas palavras de Ariés: "Por um longo período o homem mantém o mesmo olhar sobre o fenômeno da morte, mas lentamente vão aparecendo mudanças, às vezes quase despercebidas, mas que na atualidade estão sendo atingidas por uma velocidade cada vez maior"(p.25).
A maioria das pessoas não gosta dos cemitérios, pois como já mencionado, lembra que nosso tempo aqui é limitado e nunca se sabe o dia de amanhã. Para outros é local de histórias, um museu a céu aberto: quem eram aquelas pessoas? Eram felizes? Do que gostavam? Do que faleceram? Olhar as fotos nas lápides que possuem faz a imaginação de um apreciador de histórias ir muito longe.
Mas ao mesmo tempo que a morte é temida, desagradável , a maioria ainda desenvolve a crença da imortalidade da alma, da ressurreição, salvação e redenção. Então qual o motivo do medo? Tememos o desconhecido, o incerto e, porque não, um possível julgamento?
*Lidiane Fraga: É graduada em História pela Unisinos e especialista em Arteterapia pela universidade Feevale. Atua como Professora das redes municipais de Portão e São Leopoldo.
Referências bibliográficas:
ARIÈS, Phillippe. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Zahar, 1975
BLUME, Sandro. Morte e morrer nas colônias alemãs do Rio Grande do Sul: recortes do cotidiano. São Leopoldo: Oykos, 2015
DEFOE, Daniel. Um diário do ano da peste. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2002
DOUGTHY, Caitlin. Confissões de crematório: lições para toda a vida. Rio de Janeiro: Dark Side, 2016
FONSECA, Juarez. Ora bolas, o humor de Mario Quintana L±2009
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão .Londres:Hogarth, 1964
SOARES, Miguel Augusto Pinto. Representações da Morte: fotografia e Memória. Dissertação de Mestrado: Unisinos, 2007.
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